segunda-feira, 6 de julho de 2009

CRONICA DE MIGUEL SOUSA TAVARES

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Esta noite sonhei com M�rio Lino

Miguel Sousa Tavares

Segunda-feira passada, a meio da tarde, fa�o a A-6, em direc��o a Espanha e na companhia de uma amiga estrangeira; quarta-feira de manh�, refa�o o mesmo percurso, em sentido inverso, rumo a Lisboa. Tanto para l� como para c�, � uma auto-estrada luxuosa e fantasma. Em contrapartida, numa breve incurs�o pela estrada nacional, entre Arraiolos e Borba, vamos encontrar um tr�nsito cerrado, composto esmagadoramente por cami�es de mercadorias espanh�is. Vinda de um pa�s onde as auto-estradas est�o sempre cheias, ela est� espantada com o que v�:

- � sempre assim, esta auto-estrada?

- Assim, como?

- Deserta, magn�fica, sem tr�nsito?

- �, � sempre assim.

- Todos os dias?

- Todos, menos ao domingo, que sempre tem mais gente.

- Mas, se n�o h� tr�nsito, porque a fizeram?

- Porque havia dinheiro para gastar dos Fundos Europeus, e porque diziam que o desenvolvimento era isto.

- E t�m mais auto-estradas destas?

- V�rias e ainda temos outras em constru��o: s� de Lisboa para o Porto, vamos ficar com tr�s. Entre S. Paulo e o Rio de Janeiro, por exemplo, n�o h� nenhuma: s� uns quil�metros � sa�da de S. Paulo e outros � chegada ao Rio. N�s vamos ter tr�s entre o Porto e Lisboa: � a aposta no autom�vel, na poupan�a de energia, nos acordos de Quioto, etc. - respondi, rindo-me.

- E, j� agora, porque � que a auto-estrada est� deserta e a estrada nacional est� cheia de cami�es?

- Porque assim n�o pagam portagem.

- E porque s�o quase todos espanh�is?

- V�m trazer-nos comida.

- Mas voc�s n�o t�m agricultura?

- N�o: a Europa paga-nos para n�o ter. E os nossos agricultores dizem que produzir n�o � rent�vel.

- Mas para os espanh�is �?

- Pelos vistos...

Ela ficou a pensar um pouco e voltou � carga:

- Mas porque n�o investem antes no comboio?

- Investimos, mas n�o resultou.

- N�o resultou, como?

- Houve a� uns experts que gastaram uma fortuna a modernizar a linha Lisboa-Porto, com comboios pendulares e tudo, mas n�o resultou.

- Mas porqu�?

- Olha, � assim: a maior parte do tempo, o comboio n�o 'pendula'; e, quando 'pendula', enjoa de morte. N�o h� sinal de telem�vel nem Internet, n�o h� restaurante, h� apenas um bar infecto e, de facto, o �nico sinal de 'modernidade' foi proibirem de fumar em qualquer espa�o do comboio. Por isso, as pessoas preferem ir de carro e a companhia ferrovi�ria do Estado perde centenas de milh�es todos os anos.

- E gastaram nisso uma fortuna?

- Gast�mos. E a �nica coisa que se conseguiu foi tirar 25 minutos �s tr�s horas e meia que demorava a viagem h� cinquenta anos...

- Est�s a brincar comigo!

- N�o, estou a falar a s�rio!

- E o que fizeram a esses incompetentes?

- Nada. Ou melhor, agora v�o dar-lhes uma nova oportunidade, que � encherem o pa�s de TGV: Porto-Lisboa, Porto-Vigo, Madrid-Lisboa... e ainda h� umas amea�as de fazerem outro no Algarve e outro no Centro.

- Mas que tamanho tem Portugal, de cima a baixo?

- Do ponto mais a norte ao ponto mais a sul, 561 km.

Ela ficou a olhar para mim, sem saber se era para acreditar ou n�o.

- Mas, ao menos, o TGV vai directo de Lisboa ao Porto?

- N�o, p�ra em v�rias esta��es: de cima para baixo e se a mem�ria n�o me falha, p�ra em Aveiro, para os compensar por n�o arrancarmos j� com o TGV deles para Salamanca; depois, p�ra em Coimbra para n�o ofender o prof. Vital Moreira, que � muito importante l�; a seguir, p�ra numa aldeia chamada Ota, para os compensar por n�o terem feito l� o novo aeroporto de Lisboa; depois, p�ra em Alcochete, a sul de Lisboa, onde ficar� o futuro aeroporto; e, finalmente, p�ra em Lisboa, em duas esta��es.

- Como: ent�o o TGV vem do Norte, ultrapassa Lisboa pelo sul, e depois volta para tr�s e entra em Lisboa?

- Isso mesmo.

- E como entra em Lisboa?

- Por uma nova ponte que v�o fazer.

- Uma ponte ferrovi�ria?

- E rodovi�ria tamb�m: vai trazer mais uns vinte ou trinta mil carros todos os dias para Lisboa.

- Mas isso � o caos, Lisboa j� est� congestionada de carros!

- Pois �.

- E, ent�o?

- Ent�o, nada. S�o os especialistas que decidiram assim.

Ela ficou pensativa outra vez. Manifestamente, o assunto estava a fascin�-la.

- E, desculpa l�, esse TGV para Madrid vai ter passageiros? Se a auto-estrada est� deserta...

- N�o, n�o vai ter.

- N�o vai? Ent�o, vai ser uma ru�na!

- N�o, � preciso distinguir: para as empresas que o v�o construir e para os bancos que o v�o capitalizar, vai ser um neg�cio fant�stico! A explora��o � que vai ser uma ru�na - ali�s, j� admitida pelo Governo - porque, de facto, nem os especialistas conseguem encontrar passageiros que cheguem para o justificar.

- E quem paga os preju�zos da explora��o: as empresas construtoras?

- Naaa�o! Quem paga s�o os contribuintes! Aqui a regra � essa!

- E voc�s n�o despedem o Governo?

- Talvez, mas n�o serve de muito: quem assinou os acordos para o TGV com Espanha foi a oposi��o, quando era governo...

- Que pa�s o vosso! Mas qual � o argumento dos governos para fazerem um TGV que j� sabem que vai perder dinheiro?

- Dizem que n�o podemos ficar fora da Rede Europeia de Alta Velocidade.

- O que � isso? Ir em TGV de Lisboa a Hels�nquia?

- A Hels�nquia, n�o, porque os pa�ses escandinavos n�o t�m TGV.

- Como? Ent�o, os pa�ses mais evolu�dos da Europa n�o t�m TGV e voc�s t�m de ter?

- �, dizem que assim entramos mais depressa na modernidade.

Fizemos mais uns quil�metros de deserto rodovi�rio de luxo, at� que ela pareceu lembrar-se de qualquer coisa que tinha ficado para tr�s:

- E esse novo aeroporto de que falaste, � o qu�?

- O novo aeroporto internacional de Lisboa, do lado de l� do rio e a uns 50 quil�metros de Lisboa.

- Mas voc�s v�o fechar este aeroporto que � um luxo, quase no centro da cidade, e fazer um novo?

- � isso mesmo. Dizem que este est� saturado.

- N�o me pareceu nada...

- Porque n�o est�: cada vez tem menos voos e s� este ano a TAP vai cancelar cerca de 20.000. O que est� a crescer s�o os voos das low-cost, que, ali�s, est�o a liquidar a TAP.

- Mas, ent�o, porque n�o fazem como se faz em todo o lado, que � deixar as companhias de linha no aeroporto principal e chutar as low-cost para um pequeno aeroporto de periferia? N�o t�m nenhum dispon�vel?

- Temos v�rios. Mas os especialistas dizem que o novo aeroporto vai ser um hub ib�rico, fazendo a trasfega de todos os voos da Am�rica do Sul para a Europa: um sucesso garantido.

- E tu acreditas nisso?

- Eu acredito em tudo e n�o acredito em nada. Olha ali ao fundo: sabes o que � aquilo?

- Um lago enorme! Extraordin�rio!

- N�o: � a barragem de Alqueva, a maior da Europa.

- Ena! Deve produzir energia para meio pa�s!

- Praticamente zero.

- A s�rio? Mas, ao menos, n�o vos faltar� �gua para beber!

- A �gua n�o � pot�vel: j� vem contaminada de Espanha.

- J� n�o sei se est�s a gozar comigo ou n�o, mas, se n�o serve para beber, serve para regar - ou nem isso?

- Servir, serve, mas vai demorar vinte ou mais anos at� instalarem o per�metro de rega, porque, como te disse, aqui acredita-se que a agricultura n�o tem futuro: antes, porque n�o havia �gua; agora, porque h� �gua a mais.

- Est�s a dizer-me que fizeram a maior barragem da Europa e n�o serve para nada?

- Vai servir para regar campos de golfe e urbaniza��es tur�sticas, que � o que n�s fazemos mais e melhor.

Apesar do sol de frente, impiedoso, ela tirou os �culos escuros e virou-se para me olhar bem de frente:

- Desculpa l� a �ltima pergunta: voc�s s�o doidos ou s�o ricos?

- Antes, �ramos s� doidos e fizemos algumas coisas not�veis por esse mundo fora; depois, disseram-nos que afinal �ramos ricos e desat�mos a fazer todas as asneiras poss�veis c� dentro; em breve, voltaremos a ser pobres e enlouqueceremos de vez.

Ela voltou a colocar os �culos de sol e a recostar-se para tr�s no assento. E suspirou:

- Bem, uma coisa posso dizer: h� poucos pa�ses t�o agrad�veis para viajar como Portugal! Olha-me s� para esta auto-estrada sem ningu�m!

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