terça-feira, 15 de setembro de 2009

CATEMBE by Alexandre Cha�que

Escrito por Alexandre Cha�que

Quarta, 15 Abril 2009 07:20

Do outro lado do rio ou do mar - segundo escreve o pensador - existe
sempre um mito. Catembe veste esse mito, muito embora j� ningu�m o
sinta e muito menos se acocore diante dele. � que, esta parcela de
terra, que fica do outro lado da ba�a de Maputo, est� entranhada por
outras almas, que ali se instalaram pelos mais diversos interesses.
Catembe tamb�m � um entreposto, que vai dar passagem �s pessoas que
demandam Catuane, Matutuine e Ponta do Ouro.

Outros, passando por ali v�rias vezes, acabam ficando. J� n�o existe -
porque n�o existir� onde existe um entreposto - a calmia daquele
tempo. H� invas�o de pessoas vindas de quase todo o pa�s. Falam-se
quase todas as l�nguas de Mo�ambique. O turismo, tamb�m, instala-se
cada vez com maior ferocidade. As pessoas buscam terrenos para
construir, tornando o lugar cada vez mais pequeno. Vende-se e
compra-se de tudo no mercado informal. O xindindindi - variante do
ronga - ouve-se cada vez menos, ou cada vez mais longe.
A for�a dos feiticeiros daquela zona parece enfraquecer e as pessoas
falam cada vez menos deles. � a Catembe de hoje que ainda mant�m no
seu ventre os descendentes dos goeses que dali nunca mais v�o sair.
"Porque me buscas longe, nos espa�os filho meu, se eu vivo ao alcance
dos teus bra�os?" - Aljustrel, Junho de 1935 - Kalid�s Barreto - poeta
go�s.
Quando voc� chega a Catembe e pergunta pelo Diogo, toda a gente o
conhece. Se calhar seja melhor come�ar por l�, para com ele conversar
e sentir uma parte do pulsar desta terra que de m�tico j� n�o tem
muito.
O seu restaurante � uma casa de pasto bastante conhecida pela maioria
dos "maputenses" que frequentam aquela est�ncia. Agora tamb�m por
aqueles que, ouvindo falar da Catembe e do Diogo, v�o para l� e levam
mem�rias, depois de degustarem um bom camar�o. Segundo Diogo, Samora
Machel j� passou por ali. Tomou a sua �ltima refei��o antes de partir
rumo aos caminhos que o levariam, a si e aos seus compatriotas, �
liberdade. Catembe tamb�m � um retiro. No Ver�o toda a gente que ir
para l�, onde este homem, de 65 anos, os recebe afavelmente.
Sangue go�s
Diogo nunca saiu da Catembe. � filho de um go�s que apareceu por l�
levado pelo mar e pela for�a da aventura. Era um pescador e quando,
ali chegou, ficou deslumbrado pela generosidade do mar e das pessoas.
Atirou a �ncora � �gua e nunca mais abandonou a Catembe. Nasceu um
filho que at� hoje est� l�: Diogo, com 65 anos.
Este homem est� ligado �quela parte de Maputo e �s suas gentes, mas
n�o se pode falar da Catembe sem se evocar o seu nome. Mesmo enfiado
na pele da sua idade. Mant�m uma jovialidade de fazer inveja. Um dos
locais outrora emblem�ticos da Catembe � uma casa de pasto que se
chamava "Jangada".
Era ali onde Chico Ant�nio, em noites memor�veis, concentrava, quase
todos os fins-de-semana, os seus f�s. Chico cantava e tocava, como
sempre o fez: com amor. A "Jangada" pegou fogo e ardeu, ficando neste
momento apenas os escombros. Na juventude, segundo as suas pr�prias
palavras, carregava dois sacos de cinquenta quilos ao mesmo tempo.
Jogou muita "porrada" em "luta livre". E, olhando-se para ele, vamos
sentir facilmente a presen�a de um homem em constante exerc�cio
f�sico.
Pergunt�mos ao nosso interlocutor se a Catembe ainda mant�m aqueles
mitos antigos em que se falava de feiticeiros muito temidos naquela
zona. "Isto j� est� a desaparecer com o tempo. Hoje fala-se muito
pouco, tamb�m porque a juventude que hoje nasce, tem outras
tend�ncias. Os jovens que nascem aqui hoje e sejam filhos dos
mandindindi, quando est�o na idade de trabalhar, a primeira coisa que
fazem � emigrar para outros lugares e, sendo assim, os usos e costumes
desta terra est�o a desaparecer".
Sobre a pr�pria l�ngua, Diogo disse-nos tamb�m que cada vez se ouve
menos. "Se voc� quiser ouvir "xindindindi" vai para Catuane ou
Matutuine". Na verdade, prestando-se aten��o �s conversas que se tecem
nas ruas ou nas casas de pasto, de "xindindindi" n�o ouviremos nada,
ou quase nada.
Mas este homem n�o se esqueceu de uma hist�ria que com ele aconteceu
ainda no tempo da juventude: "N�s v�nhamos de Murrungulo e, de
repente, o nosso barco ficou preso, sem mais nem menos, no meio do
canal. Fizemos consultas, onde fic�mos a saber que dev�amos ter
oferecido algum peixe da nossa faina � popula��o de Murrungulo. Assim,
tivemos que atirar alguns tambores de �gua para o mar e algum peixe
tamb�m. Foi quando os esp�ritos nos deixaram passar". Jo�o Niquice,
residente na Catembe h� cerca de dez anos e a trabalhar actualmente na
cidade de Maputo, confidenciou-nos - a prop�sito do desaparecimento do
"xindindindi" - que a perda desse valor � bastante normal, na medida
em que ningu�m est� a substituir os velhos.
"Os jovens que nascem aqui est�o todos a sair � procura de melhores
condi��es de vida e, em contrapartida, h� uma demanda muito grande de
pessoas que v�m para aqui � busca de lugar para construir e fazer
algum neg�cio. A vida � assim, d� muitas voltas". Niquice disse-nos
ainda que esse factor - a perda de uma parte da vida para ganhar outra
- n�o vai espantar de todo, porque a globaliza��o tamb�m � isto.
"Todo o pa�s est� aqui representado, criando um conv�vio que s� os
mo�ambicanos conseguem manter. Voltando ainda ao nosso "guia", o
Diogo, dele fic�mos a saber que existe muita agressividade pesqueira.
"Agora h� mais pescadores do que naquele tempo, isto torna o trabalho
mais dif�cil. Mesmo com a agressividade do turismo, as casas de pasto
aqui existentes aguentam-se a muito custo.
Apesar de tudo n�s nunca fech�mos. N�o precisamos de reclames porque
somos muito conhecidos j� desde a d�cada de ?50". A uma pergunta
nossa, Jo�o Niquice revelou que o facto de haver um paradoxo entre os
jovens que saem � procura de melhores condi��es e aqueles que v�o a
Catembe � busca de uma oportunidade, ele foi perempt�rio: isto �
normal. Existe africanos que saem daqui para a Europa e europeus que
saem da Europa para aqui".
A comunidade goesa residente em Mo�ambique n�o pode estar, de forma
alguma, dissociada do desenvolvimento hist�rico-cultural do nosso
pa�s. Da mesma forma como compatriotas nossos foram desterrados para
destinos long�nquos, no tempo da escravatura, existe goeses que tamb�m
vieram para o nosso pa�s como castigo. Outros chegaram como
aventureiros, transportados em barcos de pesca, s� que, chegados aqui,
nunca mais quiseram largar a nossa terra.
Prosseguiram as suas vidas neste magn�fico espa�o geogr�fico e hoje,
provavelmente, est�o aqui para sempre. Nasceram aqui os seus filhos.
Os homens que n�o tinham mulheres voltaram temporariamente a Goa para
casar e trazer as suas esposas, para com elas continuarem a procria��o
e manter a cultura e a tradi��o do seu pa�s.
Os goeses aqui em Mo�ambique espalham-se por Maputo, Catembe, Beira,
Quelimane, ilhas de Mo�ambique e Ibo. A sua l�ngua - o concani - ainda
subsiste. Na Catembe ainda se pode ouvi-la, quando est�o entre eles.
Diogo � o s�mbolo deles ali. A presen�a goesa em Mo�ambique remonta
desde os princ�pios do s�culo XVIII.
E desde ent�o gera��es e gera��es t�m vindo a trabalhar em Mo�ambique,
principalmente nas cidades da ent�o Louren�o Marques (hoje Maputo), da
Catembe, da Beira, Quelimane, ilhas de Mo�ambique e Ibo, onde tamb�m
se fundiram as culturas europeia, asi�tica e aut�ctone e se podem
encontrar as maravilhosas mob�lias de origem goesa e o tipo de
constru��o habitacional, como relata J�lio Carrilho no seu livro sobre
o Ibo.
Pureza cultural
Os goeses residentes na Catembe, maioritariamente pescadores, s�o
considerados quase puros culturalmente, por tudo fazerem para
preservarem as suas tradi��es. Aqui ainda se fala concani - l�ngua de
Goa - com muita frequ�ncia. Ainda h� goeses que saem da Catembe,
quando atingem a idade de formarem os seus lares, para Goa, a fim de
trazerem de l� uma esposa, que vai preservar os ritos.
Ainda nos dias em que se comemora o Dia de S�o Pedro, "deus dos
goeses" encontraremos um ritual vivo que se caracteriza por uma regata
de barcos, uma prociss�o mar�tima que vai at� ao farol, que fica do
lado direito da ponte para quem vai �quela localidade de barco, vindo
da cidade de Maputo. Este ritual inclui um c�rculo � volta desse sinal
mar�timo, com os barcos unidos por uma amarra, para depois acontecer
uma cerim�nia em que uma coroa de flores que trazem consigo, � atirada
para o mar. Nesse dia e no mesmo local, ser�o consumidos pequenos
petiscos feitos com base em mariscos. E tudo isso vai preservar uma
cultura goesa que veio para o nosso pa�s, nos princ�pios do s�culo
XIX.

� espera da ponte
A infra-estrutura viria resolver um problema que apoquenta
sobremaneira os residentes da Catembe. Quase diariamente tem-se
registado, nas duas margens, um grande sofrimento por parte dos
utentes. Se tem uma viatura que deseja levar para o outro lado, ent�o
tem que preparar a resist�ncia dos seus nervos: a paci�ncia. S�o filas
enormes de carros que se registam junto �s pontes, � espera do �nico
ferry-boat em funcionamento.
Porque os outros meios s�o de diminuta capacidade, podendo transportar
apenas passageiros, sem os seus meios autom�veis. � um drama di�rio
que terminaria com a constru��o da ponte. Segundo informa��es, a
ponte, a ser constru�da, vir� do cruzamento com a auto-estrada para a
Matola, na Brigada Montada, e o quartel dos fuzileiros.
O Governo de Mo�ambique lan�ou em Novembro de 2008 um convite
internacional para a manifesta��o de inten��es para efeitos de
concep��o e concess�o da empreitada da futura ponte de Maputo para a
Catembe. J� existe algumas empresas interessadas em abra�ar este
projecto e um deles � o Grupo Mota-Engil, a cujo Conselho de
Administra��o preside o ex-dirigente socialista e ex-ministro
portugu�s, Jorge Coelho, o qual j� se encontrou com o presidente
Armando Guebuza, com a primeira-ministra, Lu�sa Dias Diogo, e com o
ministro das Obras P�blicas e Habita��o, Fel�cio Zacarias, como ele
pr�prio deu a conhecer � Imprensa, em momento oportuno.
Sabe-se ainda que n�o h� qualquer projecto relacionado com a ponte
para a Catembe, mas o que o Estado mo�ambicano pretende com o concurso
- convite lan�ado em Novembro de 2008 � encontrar um parceiro a quem o
Governo d� refer�ncias sobre as ideias gerais que pretende ver
concretizadas e receba desse mesmo parceiro um anteprojecto, da
concep��o da ponte, e uma proposta concreta sobre a engenharia
financeira que possa assegurar a execu��o da obra.
A acontecer esta grande engenharia, ser� um grande al�vio para a
Catembe, que n�o s� se ressente deste problema, como das estradas, que
constituem um grande "calcanhar de Aquiles", para aqueles que querem,
n�o s� circular dentro da vila, como seguir outros destinos, como
Matola, Catuane, Matutuine e Ponta do Ouro. Por�m, enquanto a ponte
n�o vem, a vida n�o p�ra na Catembe.
J�lio Mossela � um jovem que veio da Zamb�zia para aquelas terras em
2007. Tem apenas 20 anos de idade e j� decidiu que ali, por enquanto,
ser� o seu lugar. "Tenho o meu primo aqui. Ele � que me trouxe para
trabalhar com ele na pesca". Sobre os rendimentos conseguidos na faina
mar�tima, Mossela disse-nos que tem sido dif�cil trabalhar naquela
�rea, por causa da procura incessante do marisco.
"Mas n�o podemos parar. A vida � assim mesmo, um dia vamos melhorar a
nossa situa��o".
Garrafas na praia
A praia da Catembe, um local que outrora fora limpo e apraz�vel, j�
n�o convida tanto. O primeiro sinal de repulsa vir� da pr�pria cor das
�guas, escuras, sobretudo em dias de mau tempo. Depois � o perigo que
se corre de se sofrer um corte nos p�s porque alguns banhistas
irrespons�veis n�o se preocupam em acondicionar, em lugar seguro, as
garrafas de bebidas - particularmente alco�licas - que v�o bebendo e
depois as deitam fora aleatoriamente.
Ali�s, um dos indiv�duos por n�s encontrado na orla, afirmou que,
naquele mesmo dia, um banhista havia sido evacuado de emerg�ncia para
o banco de socorros, ap�s ter sofrido um corte num dos p�s. Catembe �
isto: tamb�m uma vila degradada e superlotada. Um mito do passado.

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